domingo, 28 de julho de 2013

Quase voltando à normalidade

E eis que, por fim, o bairro começa a voltar à normalidade. Ainda existem várias mochilas verdes, amarelas e azuis caminhando pela orla, sentadas nas esplanadas, passando para cá e para lá, mas as filas das lanchonetes e dos restaurantes desapareceram, o trânsito começa a fluir, os banheiros químicos foram recolhidos, os oficiais do exército, os PMs, Polícia Municipal, etc., etc., já não estão em cada esquina, os cânticos e gritos e gargalhadas e apitos e "Chi chi chi le le le Chiiiiileee!" e "Esta es la juventud del Papa" e "Ar-gen-ti-na!" deram lugar a uma estranha tranquilidade com sabor a fim de festa.
Três milhões de peregrinos em Copacabana foi muita coisa. Mais algumas manifestações contra o Cabral, que chegavam já de noite vindas desde a casa do governador, e a marcha das vadias, movimento social que há anos que reinvindica pelos direitos das mulheres. E apesar do barulho de manhã à noite e da noite à manhã, dos helicópteros sobrevoando, e do tremendo cansaço que esse ruído provocava, das filas, dos transtornos, dos transportes lotados, das multidões... Apesar de várias críticas, dúvidas, pensamentos que sempre me surgem... foi interessante, e até emocionante, ver a transformação de uma cidade com a presença de tantos países em forma de sorrisos e vitalidade, movidos por uma fé. Me parece estranha, até, esta tranquilidade de fim de festa que de repente assoma o bairro. Nem sei como vou conseguir adormecer sem o embalo do "Chi chi chi le le le Chiiiileee!"

sexta-feira, 26 de julho de 2013

Uff

Falta pouco, falta pouco... e ainda falta tanto, tanto... Tantos documentos, tantos papéis, tantos carimbos, tantas consularizações, tanta, e tanta... burocracia. Mas sim, estou mais perto. "Pedido de diferimento". Bandeira verde para a minha legalização.

quarta-feira, 24 de julho de 2013

Francisco e o Inverno carioca


"Até segunda-feira, depois do meio dia!”. “Sim, quando o sol aparecer na segunda-feira será hora de vir trabalhar! Bom fim de semana!”
Entramos em feriadão devido à Jornada Mundial da Juventude: dois dias inteiros e a manhã de segunda-feira, graças à visita do Papa Francisco. Ou graças à falta de capacidade da cidade maravilhosa para acolher tantas pessoas nas suas ruas, praias e transportes públicos. Assim, foram declarados feriados municipais, talvez com a esperança que os cariocas saiam do Rio para dar espaço aos peregrinos pois, todos, certamente não cabemos.
Ontem também foi feriado a partir das 16 horas (2 horas de feriado!) e, contente por ir cedo para casa, fui surpreendida pela estação de metro fechada na Glória. “Não suporta mais gente!”, “Isto são os transportes públicos do Rio!”, comentavam algumas pessoas enquanto saíam da estação depois de, minutos antes, terem lentamente entrado, em fila. Mais tarde vim a saber que foi uma falha elétrica. Passada a estupefação, ou não, pois lá no fundo sabia que podia acontecer algo assim, resolvi caminhar até ao Largo do Machado para ver se, desde lá, poderia embarcar no tão desejado metro. Isto porque de ônibus nem pensar, dadas as ruas cortadas e os ônibus lotados pela missa e demais eventos da JMJ durante toda a tarde e noite na praia de Copacabana. Nada feito, estação de metro fora de serviço e uma multidão amontoada à porta. Nem me atrevi a chegar perto. Por sorte, e com surpresa, o sistema de bicicletas do Itaú funcionou! – fico sempre nervosa quando tenho de recorrer ao serviço das chamadas magrelas (eu prefiro chama-las de laranjinhas) porque realmente é ótimo quando funciona mas, demasiadas vezes, aquela luz verde acende mas a bicicleta não sai, ou não há nenhuma disponível... Senti-me, pois, uma privilegiada por viver a uma distância passível de ser recorrida em bicicleta desde o trabalho. Pelo caminho, mochilas amarelas, azuis e verdes, bandeiras de todos os países e bonés brancos com o símbolo da Jornada iam cantando, a pé pelas ruas ou dentro dos ônibus transformados em latas de sardinha. Em sentido oposto, trabalhadores se acumulavam nos pontos de ônibus e comentavam o difícil que seria chegar a casa. O céu estava gris, começando a dar razão às previsões pessimistas do Climatempo que anunciavam a chegada da frente fria que manchou de branco algumas montanhas e cidades dos Estados mais a sul.
Quando cheguei à nossa rua, esta estava cortada e invadida por mais mochilas amarelas, azuis e verdes, bandeiras de todos os países e bonés brancos com o símbolo da Jornada. Os camelôs tentavam vender mais bandeiras e capas de chuva. A fila da Hamburgeria Bob`s dava a volta ao quarteirão. Por momentos veio-me ao pensamento uma oportunidade de negócio – a mim... – que seria fazer umas sanduíches caseiras e vendê-las aos peregrinos que faziam fila ali na porta do prédio.
Por fim cheguei a casa, imaginando o bom que seria desmaiar debaixo do chuveiro quente e permanecer na borbulha do nosso 12º andar até à manhã seguinte. Mas a curiosidade e o bichinho jornalístico fizeram com que voltasse a descer, desta vez com o Rich e a máquina fotográfica ao pescoço. Toda a orla de Copacabana estava repleta de gente e de écrans gigantes dando o espetáculo que acontecia no palco, mega-palco, situado no Leme. De mãos dadas, as mochilas amarelas, azuis e verdes caminhavam em direção ao Leme, dançavam na areia, se abraçavam, se beijavam, cantavam. Toda a praia era um manto de cores e bandeiras do Mundo inteiro. Rezaram o terço. Alguns rostos se encheram de lágrimas. O arcebispo do Rio de Janeiro presidiu a missa e a festa continuou. A multidão passou lá em baixo pela noite adentro, víamos os reflexos dessas mochilas amarelas, azuis e verdes nos prédios de em frente e adormecemos num sono profundo embalados pelos gritos e musiquinhas... “Chi chi chi, Le Le le , Chiiiillleee!”
A manhã acordou gris e húmida, qual dia de Outono na cidade Invicta. Uma chuva miudinha e fria, que parece trespassar os ossos, casacos compridos, botas, cachecóis e até luvas e gorros com cheiro a naftalina desfilaram pela calçada portuguesa. No trabalho, tive que ouvir o famoso comentário “mas você está com frio? não é europeia?”, como ser europeia me tornasse um ser imune às baixas temperaturas que entravam pela porta da varanda que teimaram em deixar aberta. Quando eu gostaria de ter a porta aberta, para entrar ar e sol, o pessoal fecha tudo, liga o ar condicionado e as luzes artificiais. Hoje, o ar condicionado era a chuva miudinha que me trespassava os ossos e entrava pela porta da varanda. Mas sou europeia, não tenho direito a sentir frio. Pena que no meu fundo de armário carioca só tenha uns poucos casacos de algodão e lenços primaveris. Deixei lá na Espanha, ou em Portugal, agora já nem sei mesmo onde, os casacos compridos, os gorros e as luvas. Para quê?
O pior de tudo é que esta frente fria, a pior dos últimos anos, chega precisamente com mais um feriadão e trazendo grandes prejuízos morais e econômicos... Partíamos esta noite para Petrópolis, para amanhã começarmos a travessia da Serra dos Órgãos. 3 dias caminhando pela montanha na companhia de amigos, longe da confusão, só nós e a natureza. Perdemos o dinheiro das entradas no Parque Nacional e o alojamento nos Refúgios de Montanha, ganhamos quatro dias e meio de chuva, frio, ruas interditadas, metro com horário restringido e um bairro sobrelotado de mochilas amarelas, azuis e verdes, bonés brancos, capas de chuva, terços, bandeiras e gritos de “Chi chi chi, Le Le le , Chiiiillleee!”.
Aproveitarei para fazer aquilo que vou adiando por não aguentar muito tempo quieta quando o sol brilha lá fora, como escrever, ler, ver filmes, e para desfrutar do conforto de um chá quente tomado debaixo do edredom. O que me alivia é pensar que esta chuva miudinha e fria, que parece trespassar os ossos, e o céu gris, só duram uns poucos dias. Dois, três dias. Ou quatro e meio. Enfim, o tempo que dure o feriadão.

terça-feira, 2 de julho de 2013

Também somos o chumbo das balas

Vale a pena ler e refletir, por Eliane Brum:

Você está na sala assistindo à TV. Ou está no restaurante, com seus amigos. Ou está voltando para casa depois de um dia de trabalho. Você ouve tiros, você ouve bombas, você ouve gritos. Você olha e vê a polícia militar ocupando o seu bairro, a sua rua. É difícil enxergar, por causa das bombas de gás lacrimogêneo, o que aumenta o seu medo. Logo, você está sem luz, porque a polícia atirou nos transformadores. O garçom que o atendia cai morto com uma bala na cabeça. O adolescente que você conhece desde pequeno cai morto. Um motorista está dirigindo a sua van e cai ferido por um tiro. Agora você está aterrorizado. Os gritos soam cada vez mais perto e você ouve a porta da casa do seu vizinho ser arrombada por policiais, que quebram tudo, gritam com ele e com sua família. Em seguida você vê os policiais saírem arrastando um saco preto. E sabe que é o seu vizinho dentro dele. Por quê? Você não pergunta o porquê, do contrário será o próximo a ser esculachado, a ter todos os seus bens, duramente conquistados com trabalho, destruídos. Se você está em casa, não pode sair. Se você está na rua, não pode entrar.
O que você faz?
Nada.
Você não faz nada porque não aconteceu com você. Você não faz nada especialmente porque se sente a salvo, porque sabe que não apenas não aconteceu, como não acontecerá com você. Não aconteceu e não acontecerá no seu bairro. Isso só acontece na favela, com os outros, aqueles que trabalham para você em serviços mal remunerados.
Aconteceu na Nova Holanda, no Complexo da Maré, no Rio de Janeiro, na segunda-feira passada (24/6). Com a justificativa de que pessoas se aproveitavam da manifestação que ocorria na Avenida Brasil – o nome sempre tão simbólico – para fazer arrastão, policiais ocuparam a favela. Um sargento do BOPE morreu e a vingança da polícia começou, atravessou a madrugada e boa parte da terça-feira. Saldo final: 10 mortos, entre eles “três moradores inocentes”.
Os brasileiros foram às ruas, algo de profundo mudou nas últimas semanas, tão profundo que levaremos muito tempo para compreender. Mas algo de ainda mais profundo não mudou. E, se esse algo ainda mais profundo não mudar, nenhuma outra mudança terá o peso de uma transformação, porque nenhuma terá sido capaz de superar o fosso de uma sociedade desigual. A desigualdade que se perpetua no concreto da vida cotidiana começa e persiste na cabeça de cada um.
Quando a polícia paulista reprimiu com violência os manifestantes de 13 de junho, provocando uma ampliação dos movimentos de protesto não só em São Paulo, mas em todo o Brasil, houve um choque da classe média porque, dessa vez, muitos daqueles que foram atingidos por balas de borracha e bombas de gás lacrimogêneo eram seus filhos, irmãos e amigos. Como era possível que isso acontecesse?
Era possível porque a polícia militar – e não só a de São Paulo, como se sabe e tem se provado a cada manifestação, nas diversas cidades – agiu no centro com quase a mesma truculência com que cotidianamente age nas favelas e nas periferias. Quase com a mesma truculência, porque algumas vozes se levantaram para lembrar que nas margens as balas são de chumbo. Balas de borracha, como foi dito em tom irônico, seria um “upgrade”. A polícia fez, portanto, o que está acostumada a fazer no dia a dia das periferias e favelas, o que é ensinada e autorizada a fazer. E muitos policiais devem ter se surpreendido com a reação da opinião pública, já que agem dessa maneira há tanto tempo e as reclamações em geral ficavam, até então, limitadas às mesmas organizações de direitos humanos de sempre.
E então veio a Maré. E, em vez de balas de borracha, as balas eram de chumbo. Em vez de feridos, houve mortos. E, ainda que o massacre tenha tido repercussão, especialmente no Rio de Janeiro, ela foi muito menor e menos abrangente do que quando a violência foi usada no centro de qualquer cidade. Por quê? Seriam os brasileiros da Maré ou de outras favelas menos brasileiros do que os outros? Seriam os humanos da Maré ou de outras periferias menos humanos do que os outros? Sangrariam e doeriam os moradores da Maré menos do que os outros?
É preciso que a classe média se olhe no espelho, se existe mesmo o desejo real de mudança. É preciso que se olhe no espelho para encarar sua alma deformada. E perceber que essa polícia reflete pelo menos uma de suas faces. Parece óbvio, do contrário essa polícia não seguiria existindo e agindo impunemente, mas às vezes o óbvio é esquecido em nome da conveniência.
É fácil renegar a polícia militar como algo que não nos diz respeito, como sempre fazemos com as monstruosidades que nos envergonham. Sem precisar assumir que essa polícia existe como resultado de uma forma de ver a sociedade e se posicionar nela – uma forma que perpetua a desigualdade, dividindo o país entre aqueles que são cidadãos e têm direitos e aqueles que não têm nenhum direito porque, mesmo que trabalhem dura e honestamente, são criminalizados por serem pobres.
No momento em que os mortos da Maré incomodam menos que os feridos da Paulista ou de outros lugares do Brasil, se justifica e legitima a violência da polícia. Se justifica e legitima de várias maneiras – e também por aqueles que sentem menos a violência da Maré do que a da Paulista, apesar de ela ser numa proporção muito maior, a começar pela diferença das balas. Se justifica e se legitima e se perpetua porque, ainda que não confessado, mas claramente expressado, vive-se como se os mais pobres, os que moram em favelas e periferias, pudessem ter suas casas invadidas, seus bens destruídos e suas vidas extintas. 
Se fosse você ou eu na Maré, reconheceríamos os rostos dos que tombam e estaríamos lá, aterrorizados com a possibilidade de sermos os próximos a virar estatística. O garçom que caiu morto com um tiro na cabeça é Eraldo Santos da Silva, 35 anos. Quem estava no restaurante contou que os policiais do BOPE atiraram no transformador para o local ficar às escuras e então mudar a cena do crime, retirando as cápsulas do chão. O garoto de 16 anos que foi assassinado se chama Jonatha Farias da Silva. A polícia disse que ele estava com uma arma na mão, mas várias pessoas que o conhecem desde criança afirmam ser impossível. Jonatha é descrito como um menino tímido e muito sozinho que perdeu a mãe de tuberculose aos 11 anos e vivia com um irmão mais velho num quarto de quatro metros quadrados. Engraxava sapatos e vendia biscoitos nos congestionamentos da Linha Vermelha para sobreviver, enquanto sonhava com ser mecânico. O motorista ferido quando dirigia a van alvejada por tiros é Cláudio Duarte Rodrigues, de 41 anos. Foi levado ao hospital por moradores, mas despachado para casa com a bala ainda alojada no glúteo. Só depois uma ONG obteve a promessa de uma ambulância para buscá-lo. Você ainda poderia ser a empregada doméstica que ouviu os policiais arrombarem a porta da casa do seu vizinho, ouviu seus gritos – “Me larga! Socorro!” – e o viu ser retirado de lá, dentro de um saco preto.
Mas isso não acontece com você, nem com seus filhos. Nem comigo. Mas, ainda que não aconteça, como é possível sentirmos menos? Ou mesmo não sentir? Ou ainda viver como se isso fosse normal? Ou olhar distraidamente para a notícia no jornal e pensar: “mais uma chacina na favela”?
Em que nos transformamos ao sentir menos a morte de uns do que a de outros, a dor de uns do que a de outros, mesmo quando olhamos para uns e outros apenas pela TV?
O que torna isso possível?
É preciso parar e pensar. Porque esses, que assim morrem, só morrem porque parte da sociedade brasileira sente menos a sua morte. É cúmplice não apenas por omissão, mas por esse não sentir que se repete distraído no cotidiano. Por esse não sentir que não surpreende ninguém ao redor, às vezes nem vira conversa. Essa polícia que mata nos reflete, por mais que recusemos essa imagem no espelho.
São vários os discursos que se imiscuem na vida cotidiana e penetram em nossos corações e mentes, justificando, legitimando e perpetuando a ideia de que a vida de uns vale menos do que a de outros, de que a vida dos mesmos de sempre vale menos do que a dos mesmos de sempre. Um desses discursos é a afirmação, que nesse caso foi assumida e amplificada por parte da imprensa, de que a polícia teria admitido que “três moradores mortos eram inocentes”. A frase tem tom de denúncia, ao afirmar que a polícia reconheceu a morte de “inocentes” na Maré. A declaração expressa, de fato, a ideia de que ao menos esses três não deveriam ter sido assassinados. Por oposição, cabe a pergunta: e os outros deveriam?
Essa frase diz ainda mais: se “três são inocentes”, aceita-se automaticamente e sem maior investigação que os demais seriam suspeitos de tráfico e outros crimes – e destes, quase nada ou nada é contado. É nesse ponto que se oculta algo ainda pior contido nesse discurso, que é a aceitação da pena de morte de suspeitos. Ou seja, os supostamente “não inocentes”, os supostamente “bandidos”, “traficantes”, “vândalos” poderiam, então, ser mortos? É isso o que se diz nas entrelinhas. Mas não seriam todos “inocentes”, até julgamento em contrário, dentro do ritual jurídico previsto pelo Estado de direito? Sem contar que a lei brasileira não prevê a pena de morte de julgados e condenados por crimes, nem sequer os hediondos. Mas o Estado, com o aval de uma parte significativa da sociedade, executa suspeitos.
A aceitação dessa quebra cotidiana da lei pelo Estado está presente na narrativa dos acontecimentos – e a imprensa tem um papel importante na reprodução desse discurso: “três deles eram inocentes”, “morreram em confronto”, “morreu ao resistir à prisão”, “troca de tiros” são algumas das expressões entranhadas nos nossos dias como se tudo explicassem. Como se isso fosse corriqueiro – e não monstruoso. Mesmo para a morte de “inocentes”, fora as mesmas vozes dissonantes de sempre, se atribui expressões como “efeito colateral”. E parece ter sido fácil para a classe média aceitar que o “efeito colateral” é a morte dos filhos, dos irmãos, dos pais e das mães dos pobres.
Em um artigo no site do Observatório de Favelas, que vale a pena ser lido (aqui), Eliana Sousa Silva, diretora da Redes da Maré e da Divisão de Integração Universidade Comunidade PR-5/UFRJ, faz uma análise da frase dita na TV pelo consultor de segurança pública Rodrigo Pimentel: “Fuzil deve ser utilizado em guerra, em operações policiais em comunidades e favelas. Não é uma arma para se utilizar em área urbana”. Ele criticava, em 18/6, a imagem de um policial militar atirando para o alto com uma metralhadora, perto de manifestantes que praticavam ações violentas em frente à Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro. Como afirma Eliana, parece um comentário “natural, racional e equilibrado”, mas, de fato, o que ele está dizendo? Que na favela pode. E, fora uma ou outra voz, como a dela, não causa nenhuma surpresa. Nem mesmo se estranha que na favela pode, nos protestos do centro não.
A palavra “confronto” encobre forças desiguais – e o que tem sido chamado de “confronto” seguidamente não é o que diz ser. Mesmo em confrontos de fato trata-se o que é desigual como se fosse igual, também simbolicamente. Como se uma das forças em confronto não encarnasse o Estado e tivesse, portanto, de respeitar a lei e seguir parâmetros rígidos de conduta – e não igualar-se a quem supostamente está no outro lado. Como se a polícia, como aconteceu na Maré, tivesse autorização para se vingar pela morte – lamentável – do sargento do BOPE, entrando na favela e arrebentando. E o sargento do BOPE Ednelson Jerônimo dos Santos Silva, 42 anos, é também uma vítima desse sistema avalizado por uma parte significativa da sociedade dita “de bem”.
A questão é que, se a polícia não tem autorização de direito, tem de fato. E tem porque a classe média sente menos a dor dos pobres. Tem autorização porque uma parcela da sociedade primeiro criminaliza os pobres – e, depois, naturaliza a sua morte. É por isso que a polícia faz o que faz – porque pode. E pode porque permitimos. A autorização não é dos suspeitos de sempre, apenas, mas de parte considerável dessa mesma classe média que vai às ruas gritar pelo fim da corrupção. Mas haverá corrupção maior, esta de alma, do que sofrer menos pelos mortos da Maré do que pelos feridos da Paulista?
A autorização para a morte dos pobres é de cada um que sente mais as balas de borracha da Paulista do que as balas de chumbo da Maré. Sentir, o verbo que precede a ação – ou a anula.
“Estado que mata, nunca mais!” é o chamado de um ato ecumênico marcado para as 15h desta terça-feira (2/7), com concentração na passarela 9 da Avenida Brasil, pelos moradores da Maré. A manifestação, anunciada como “sem violência e pacífica”, pretende lembrar os 10 mortos de 24 e 25 de junho, inclusive o sargento do BOPE. “Não é mais aceitável a política militarizada da operação do estado nos territórios populares, como se esses locais fossem moradas de pessoas sem direitos. Responsabilizamos o governador do Estado e o secretário de Segurança Pública pelas ações policiais nas favelas. Exigimos um pedido de desculpas pelo massacre e o compromisso com o fim das incursões policiais nas favelas cariocas, sustentadas no uso do Caveirão e de armas de guerra”, diz a chamada na internet.
Este ato poderá se tornar um momento de inflexão nos protestos que atravessam o país. Saberemos então se os cidadãos das favelas estarão sozinhos, como sempre, ou acompanhados pelas mesmas organizações de direitos humanos de sempre – ou se o Brasil está, de fato, disposto a começar a curar sua abissal e histórica cisão.