Um conto de Zuenir Ventura sobre o Rio de Janeiro:
"Aconteceu neste verão. Convidado a escrever sobre um canto do Rio, escolhi
o Arpoador, porque de lá se costuma desfrutar deslumbrantes entardeceres. Os
termômetros marcavam quase 40º, com a sensação térmica beirando os 50º. Sentado
nas pedras, apreciava o sol refletir com tal intensidade sobre o mar espelhado
que devo ter experimentado aquela ilusão ótica que no deserto se chama miragem.
A gente entra num clima onírico e acredita ver o que não existe. De repente,
senti uma urgência febril de dividir aquele espetáculo mágico com alguns
personagens que cantaram e encantaram o Rio. A primeira aparição foi de Millôr,
que veio correndo pela areia, como sempre fazia. Passou pelo largo que agora
leva o seu nome, subiu até onde eu estava e repetiu uma de suas geniais
definições: “O pôr do sol é de quem olha”. Em seguida, foi a vez de Tom e
Vinicius, que atravessaram o Parque Garota de Ipanema carregando o violão.
Tinham acabado de acordar, após uma longa noite de boemia. Finalmente, vindo de
Copacabana, chegou Oscar Niemeyer, trazendo nos olhos as curvas das mulheres e
dos morros cariocas com que fez sua arquitetura.
Como não podia deixar de ser, a conversa girou em torno dessa cidade solar,
sensual, exibida que nasceu para ser musa. Falou-se principalmente do
narcisismo de quem desde pequena se habituou aos elogios. Era ainda uma criança
quando um de seus adoradores, o primeiro governador-geral Tomé de Souza, se
desmanchou: “Tudo é graça o que dela se pode dizer”. Alguém lembrou que até os
religiosos lançaram sobre ela olhares profanos: “É a mais airosa e amena baía
que há em todo o Brasil”, suspirou o padre Anchieta, inteiramente catequizado.
Seu colega da Companhia de Jesus, o padre Fernão Cardim, sentiu o mesmo: “É
coisa fermosíssima e a mais aprazível que há em todo o Brasil”.
Estimulado pela exuberância sensorial daquela tarde, resolvi corrigir
Vinicius, que dizia que ser carioca é um estado de espírito. Acho que é mais.
Não se trata apenas de alma, mas de corpo e alma. Ama-se a cidade com todos os
sentidos, a começar pelos olhos. Olha que coisa mais linda uma garota de
Ipanema a caminho do mar. Ela vai se molhar e se estender nas areias para
dourar seu copo quase nu. Segundo Tom, que transformou em música tudo isso,
esse rito hedonista, quase erótico, é uma herança de nossos antepassados
tamoios, que nos ensinaram a curtir a água, o corpo, a música e a dança.
O sol já estava sendo rendido no seu plantão diário, e os banhistas
noturnos começavam a estender suas cangas na areia para o mais novo modismo
deste verão: o banho de lua. Foi quando chegou Cazuza para fazer parte do show.
Antes de dar um mergulho, cantou: “Vago na lua deserta das pedras do Arpoador”.
Nunca me senti tão tamoio quanto nesse fim de tarde, início de noite nas
pedras mágicas do Arpoador."
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