terça-feira, 8 de maio de 2012

As crianças, espelho da violência

Hoje um dos meus alunos, de 9 anos, cortou o braço de outra aluna com uma lâmina gillete em plena aula. Um corte superficial, mas o braço sangrou, a garota chorou, e ficámos todos estupefactos. Eu estava de costas, corrigindo os deveres de outro, e foi tudo tão rápido, tão surreal, que ainda não acredito que aconteceu.

A Neuza conversou com ele durante o resto da aula numa sala à parte. No fim, fizémos uma assembleia onde ele pediu desculpas e explicou o porquê de tal comportamento. O porquê? A garota há uma semana, na rua, insultou-o, chamou-o de burro. E isso me preocupou. Pensar que esse insulto o feriu  de tal forma que, passados tantos dias, viesse para a aula com uma gillete e, à mínima distração minha, cortasse o braço dela. Também me preocupou o sorriso dele enquanto eu lhe falava da gravidade do acto.
Perguntámos a cada um dos alunos qual a consequência que achava adequada para um comportamento tão grave, e nesse momento percebi como a violência está normalizada e enraizada em cada um deles. A professora bater nele. (...) A mãe. Porque a mãe pode bater. (...) Eu acho que o mais adequado é cortar o braço dele com a gillete porque assim ele vai perceber o que ela sentiu quando ele fez isso. Colocá-lo todo o tempo de pé virado à parede. Castigá-lo. (...) Expulsá-lo da ong.

Explicámos que a violência não é a solução, e que a expulsão também não. Aceitámos a proposta da garota de o fazer escrever e copiar uma frase do tipo não volto a bater aos meus colegas muitas vezes repetidas. Fiquei mais tranquila por ser a própria vítima a encontrar a forma justa de ressarcir o seu dano. Mas não fiquei tranquila ao me aperceber melhor da realidade na qual estas crianças estão crescendo. Uma realidade violenta. Olho por olho. Ela outro dia me insultou, por isso tive de fazer isso. 9 anos de idade. Uma vítima. O espelho da violência que se vive aqui na favela.

Resolvemos não expulsar o garoto porque ele precisa, mais do que ninguém, de estar aqui. Ser orientado. Mas os pais dela vieram mais tarde falar connosco e disseram que, se não o expulsamos, retiram a miúda das actividades da ong. Se você faz isso agora com 9 anos, com 11 anda com uma arma na mão. Você é muito perigoso.  O pai da miúda não se inibe e fala isso para o miúdo.
Uma criança não pode ouvir dizer que é perigosa. Se ouve isso, se o expulsamos, ele acabará acreditando que é realmente perigoso e aí a sua conduta só piorará. Mas também não podemos perder a miúda.
Difícil. Qualquer decisão será injusta e errada.

Há bocado a Neuza me chamou e me mostrou o celular dela. O pai do Matheus acaba de mo trazer, estava dentro da mochila dele... 
Não... Ele outro dia levou uma caneta minha, o corrector de um colega... mas o celular da Neuza... e hoje?... quando admitiu que fez mal e pediu desculpas à companheira?... quando se deliberou sobre o seu castigo e aceitou ser justo porque tinha feito algo realmente muito grave!?

9 anos. Só tem 9 anos. Precisa de ajuda, antes que seja demasiado tarde.


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