terça-feira, 15 de maio de 2012

Dias em duplicado


Necessito que os meus dias sejam em duplicado.
No original: Viver. Observar. Sentir. No papel químico: Reflexionar. Ler. Escrever.
Viver. Acordar às 6 da manhã. Caminhar. Fazer ginástica na Igreja Evangelista Batista Renovada até às 8h. Conversar pelo caminho com a Bia, uma garota de 19 anos com sobrepeso que consegui convencer a fazer desporto. E a mudar de alimentação. Tomar banho. Comprar pão na padaria de em frente. Tomar o café da manhã. Cereais. Fruta. Ler os títulos online do Globo. Do El País. Do Público. Isso se der tempo para tudo, o que nem sempre acontece. Dar aulas à turma da manhã. Números, alfabeto, verbos. Canções. Trava-línguas. Sopas de letras. Jogo para aprender vocabulário. Preparar aulas das turmas de tarde. Pesquisar dinâmicas. Elaborar jogos, exercícios. Planificar. Ir ao supermercado fora da favela, do outro lado da linha do trem. É muito mais barato que dentro. Carregar as compras até casa. No caminho cumprimentar a vizinha. Comprar mangas, abacaxis, mamões debaixo da ponte. Goiabas, que delícia. Conversar com a Neuza sobre os miúdos. Imprimir os exercícios para as aulas. Preparar o almoço com poucos utensílios. Comer. Dar aulas às duas turmas da tarde, das 15h às 19h. Ajudar os mais pequenos com os trabalhos de casa. Caminhar pela estrada que segue a linha do trem e vai de Parada de Lucas até Cordovil e por aí fora. Ou pelas ruas da Cidade Alta, bairro contíguo que foi cenário do filme A Cidade de Deus. Conversar com o Danilo. Às vezes durante horas, e nunca esgotamos os temas. Encontrar alguma aluna pelo caminho. Ir ao karaté.  Parar para tomar um suco e comer um salgado, 2 reais. Dar um oi ao vigia da esquina que tem ar de garoto e olhar perdido. Mandar relatório das aulas à ong espanhola. Preparar as aulas do dia seguinte.
Nos dias em que não tenho aulas, pegar o ônibus para a zona sul. Ou o trem. E o metrô. Na Estação Central, comer um pastel de queijo (e lembrar-me da Cláudia). Ajudar um senhor invisível, de cadeira de rodas, a atravessar um buraco na calçada. Ninguém o vê. Ir ao Instituto Cervantes entregar ou requisitar algum livro. Conversar horas com o bibliotecário e sair de lá com uma montanha de livros. Reunir-me com um sociólogo do Observatório das Favelas. Com a responsável do Programa de Prevenção de Homicídios entre jovens. Reunir-me com a diretora de uma ong na Cidade de Deus. Nos entretantos, pegar um ônibus. Correr para outro, que decide não parar. E pegar ainda outro. Trânsito parado na Avenida Brasil. Os livros pesam e alguém me oferece o lugar sentado. Ou para segurar os livros durante a viagem louca, apertada e sudorosa.
Ao sábado curso “Favelas Cariocas: Ontem e Hoje”. Escutar. Aprender. Muito. Conversar com os colegas. Cada um mais interessante que o outro. Aprender. Sair com mais dúvidas do que quando entrei. E com um maço de textos para ler. Com ideias, projetos, vontade de ficar cá. Caminhar na orla. Assistir a um concerto gratuito em Ipanema. Samba canção e mar como pano de fundo. Caminhar. Encontrar-me com a voluntária professora de inglês. Comer açaí. Pegar dois ônibus para regressar a casa. Encontrar um aluno na rua mal chego a Lucas. Lavar roupa. Revisar os e-mails. Procurar trabalho. Espreitar pela janela os jovens que ouvem funk durante toda a noite de sábado. Com muita sorte, ouvem samba, mas isso só aconteceu uma vez. Um carro com um alta voz no volume máximo. Dançam. Bebem. Falam alto. Tento dormir. Fogos. Tento dormir outra vez. Mais fogos e me assusto. Vou à janela. Música. O som da ventoinha. Do funk. Dos aviões.
Ao domingo acordo cedo. Aliás, nem chego a dormir. Pegar mais ônibus, mas desta vez vão rápido porque não há trânsito. Pedir ao motorista que me diga qual é a saída. Fazer caminhada com grupo de moradores do bairro da Urca. Subir ao Morro da Babilônia. Visitar a favela desse morro. Caminhar no calçadão de Copacabana. Apanhar sol. Conversar com um artesão que vende pulseiras e colares na praia feitos no Complexo do Alemão. Acabar em casa de uma portuguesa de 81 anos que vive há 60 no Brasil e ainda tem sotaque luso. De Cinfães. Uma casa em plena Copacabana. Nada que ver com as de Lucas. Conversar muito. Tomar um refresco. Andar em bicicleta graças ao fantástico sistema de bicicletas públicas do Itaú. Pena que só exista na zona sul. Andar e andar de bicicleta... do Leme até Leblon. Parar para ver o nascer da lua no mar. Pegar ônibus. Outro. Chegar a casa. Conversar com a Neuza. Organizar reuniões. Trabalhar até às 3h da manhã. Lutar contra os mosquitos durante toda a noite. Acordar no dia seguinte com a cara tipo sarampo.
Observar. O amanhecer na favela. Os alunos com as t-shirts da Prefeitura indo para as aulas. O Paulo que abre a mercearia. O bandido que já mudou de turno. A água do valão que parece estar cada vez mais suja. Os passos lentos e pesados da Bia, que vai comigo à ginástica. A senhora de idade que não consegue fazer o exercício. O professor que anima. A fila imensa de pessoas que espera o ônibus que vai para a zona sul e só regressa à noite. Os vendedores que colocam as bandejas de abacates e mangas nas suas bancas debaixo da ponte. O vizinho que já está em frente à nossa casa e aí ficará sentado até anoitecer. As carrinhas de transportes que abastecem os comércios. A grua que retira o lixo do valão. Os carros de mão sobrecarregados. As crianças que chegam ensonadas à aula. Os sorrisos. As gargalhadas. A forma como falam de coisas sérias. Os gestos. As frases. O beijo que me dão antes de saírem. O jeito dos adolescentes. As conversas que têm entre eles. Inquietudes.
A mudança de feições no trajeto norte-sul. De cor de pele. De roupa. De arquitetura. Casas de tijolos. Becos estreitos e labirínticos. Pó. Lixo. Portas e janelas abertas. Portões altos e porteiros à entrada. Pessoas sentadas à entrada das casas. Conversando. Vendendo coxinhas de frango. Pessoas correndo no calçadão, andando em bicicleta, tomando agua de côco. No trem, vendedores de isqueiros, biscoitos Globo, refrigerantes. Muito ruído. Muita trepidação. Não dá para escrever. No entanto, eu insisto. Como é que você consegue, e ainda por cima com letra bonita? Olhares curiosos em cima das minhas anotações. Olhares cansados. Perdidos. Sonolentos. Corpos desgastados. Descalços. Alguns deitados em redor da Central do Brasil. Dormindo. Agoniando. No metrô, louros bronzeados com a sua prancha de surf. Crianças com uniformes de colégios particulares. Homens engravatados. Chapéus. Morenas elegantes. Turistas de bermudas. Mochilas Northface. Óculos de Sol. Cheiro a perfume. Escadas rolantes. Limpeza. Ipods. Sapatilhas Nike. Ordem. Calças fitness. Beleza. Luxo.
Ao fim do dia, uma multidão passeando pela orla marítima. Tomando caipirinhas. Escutando música. O pôr-do-sol. Os morros iluminados. Na Central, os catadores entram nos ônibus com os sacos cheios de latas. As ruas ainda mais sujas. O trem ainda mais cheio. Os olhares mais cansados. Em Parada de Lucas, muita gente nas tascas. À porta de casa. Festas improvisadas. Bailes. O jogo do Botafogo-Vasco. Cervejas. Crianças brincando nas ruas. Armas.  
Sentir. Felicidade, todos os dias quando me desperto e me lembro onde estou e o que estou fazendo. Emoção. Angústia, por pensar que só estarei três meses. Paz. Serenidade. Quando chego a Copacabana e vejo o mar. Caminho na areia. Sinto a areia massajar meus pés. A água salgada na boca. O sol na pele. Quando olho à minha volta e me deixo contagiar pela beleza do Rio de Janeiro. O mar. Os morros. A natureza. As palmeiras. Satisfação. Prazer. Quando ando de bicicleta pela orla e vou olhando o mar e ouvindo os sambas das esplanadas. Surpresa. Incredulidade. Revolta. Impotência. Por tantas injustiças, tantas carências, tanto sofrimento. Tantas vidas despedaçadas pelo tráfico. Pela violência. Pela espiral de desgraças. Lágrimas. Tristeza. Empatia. Admiração. Por aquelas pessoas que estou conhecendo e que são exemplos de resiliência e força. De esperança. Energia. Ternura. Por todos e cada um dos meus alunos. Satisfação. Alegria. Quando os vejo a aprender, a rir, a desfrutar das dinâmicas e dos exercícios.  Entusiasmo. Ao preparar as aulas, ao dar as aulas, ao escrever o relatório das aulas. Desespero. Cansaço. Quando o ônibus não anda, o trem está cheio, o metrô me esmaga. Quando as horas passam e é difícil chegar ao destino, fazer qualquer coisa, avançar.  Desilusão. Quando chove precisamente no único dia em que poderia ir à praia. Domingo. A casa se inunda. Panos e toalhas para estancar a água que escorre pelas paredes e pinga do teto. Leveza. Descontração. Quando saio de casa e não sei como vai terminar o dia. Termino conversando com alguém durante horas. Descobrindo algum recanto surpreendente. Aprendendo. Felicidade.
Reflexionar. Sobre tudo o que estou vivendo, observando, sentindo. Todas as experiências. Todas as imagens. Todas as conversas. Sentimentos. Sobre tudo o que estou aprendendo, que é muito, e não consigo absorver se não tenho tempo para reflexionar.
Ler. O jornal. A revista. Os livros que trouxe na mochila. Travesuras de la niña mala. La ciudad y los perros. El español em la maleta. Rio de Janeiro, Carnaval de fuego. Os livros de espanhol que requisitei no Cervantes. Espanhol urgente para brasileiros. Os livros que me ofereceram no Observatório das Favelas. O que é a favela, afinal? Homicídios na adolescência no Brasil. Prevenção à violência. Os textos das aulas. Favela, cidade e cidadania em Rio das Pedras. Nunca é tarde para ser feliz? A imagem das favelas pelas lentes do Correio da Manhã. Das remoções à célula urbana.  Páginas web de ongs, projetos sociais, iniciativas. Wikipédia. Google.
Escrever. As conversas que tenho. As imagens que observo. Os sentimentos. Os relatos. Tudo o que vivo. No diário. Algo no blog Arroz e Feijão Preto. As avaliações individuais de cada aluno.   Os relatórios semanais das aulas. Os posts do blog Español para Tod@s. Os e-mails. As mensagens do facebook. A agenda. Os apontamentos das aulas do curso. As frases soltas. Os pensamentos. Os desejos. As inquietudes. Os medos. As alegrias.
Falta-me tempo para viver, simplesmente viver esta experiência, deixar-me levar, sentir, observar, escutar... e para pensar em tudo isso, ler e escrever todos os pormenores, todas as insignificâncias... Apetecia-me poder gravar todos os meus dias para, mais tarde, os transcrever.  Porque não é fácil viver e ao mesmo tempo querer registar tudo. Absorver tudo. Mas... se sinto essa impotência, essa angústia de não conseguir fazer tudo o que quero, é porque realmente os meus dias são ricos e completos e estou aprendendo e recebendo muito de tudo e de todos. E isso já ninguém me tira... 

PS: Parabéns a todos aqueles que conseguiram ler este post tãooooo longo!!! Merecem um aplauso!! Clap clap clap!

3 comentários:

  1. Pôxa, este post está fantástico. Pena que seja privado!!!

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  2. palmas a ti que nos encadeias desde o primeiro momento a ler-lo até ao fim! obrigada :)

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  3. O clap clap clap só pode ser dirigido é a ti...
    Um texto absolutamente formidável...
    E quem sabe um dia terás a possibilidade de escrever para memória futura e não em privado tudo aquilo que estás a ver e sentir... sonhar é isso... E com esta qualidade, sonhar não custa nada... ;-)
    Beijinhos do outro lado do oceano... em frente... :-)

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