Necessito que os meus dias sejam em
duplicado.
No original: Viver. Observar. Sentir.
No papel químico: Reflexionar. Ler. Escrever.
Viver. Acordar às 6 da manhã. Caminhar. Fazer
ginástica na Igreja Evangelista Batista Renovada até às 8h. Conversar pelo
caminho com a Bia, uma garota de 19 anos com sobrepeso que consegui convencer a
fazer desporto. E a mudar de alimentação. Tomar banho. Comprar pão na padaria
de em frente. Tomar o café da manhã. Cereais. Fruta. Ler os títulos online do
Globo. Do El País. Do Público. Isso se der tempo para tudo, o que nem sempre
acontece. Dar aulas à turma da manhã. Números, alfabeto, verbos. Canções.
Trava-línguas. Sopas de letras. Jogo para aprender vocabulário. Preparar aulas
das turmas de tarde. Pesquisar dinâmicas. Elaborar jogos, exercícios.
Planificar. Ir ao supermercado fora da favela, do outro lado da linha do trem.
É muito mais barato que dentro. Carregar as compras até casa. No caminho
cumprimentar a vizinha. Comprar mangas, abacaxis, mamões debaixo da ponte.
Goiabas, que delícia. Conversar com a Neuza sobre os miúdos. Imprimir os
exercícios para as aulas. Preparar o almoço com poucos utensílios. Comer. Dar
aulas às duas turmas da tarde, das 15h às 19h. Ajudar os mais pequenos com os
trabalhos de casa. Caminhar pela estrada que segue a linha do trem e vai de
Parada de Lucas até Cordovil e por aí fora. Ou pelas ruas da Cidade Alta,
bairro contíguo que foi cenário do filme A Cidade de Deus. Conversar com
o Danilo. Às vezes durante horas, e nunca esgotamos os temas. Encontrar alguma
aluna pelo caminho. Ir ao karaté. Parar para tomar um suco e comer um
salgado, 2 reais. Dar um oi ao vigia da esquina que tem ar de garoto e
olhar perdido. Mandar relatório das aulas à ong espanhola. Preparar as aulas do
dia seguinte.
Nos dias em que não tenho aulas, pegar o
ônibus para a zona sul. Ou o trem. E o metrô. Na Estação Central, comer um
pastel de queijo (e lembrar-me da Cláudia). Ajudar um senhor invisível,
de cadeira de rodas, a atravessar um buraco na calçada. Ninguém o vê. Ir ao
Instituto Cervantes entregar ou requisitar algum livro. Conversar horas com o
bibliotecário e sair de lá com uma montanha de livros. Reunir-me com um
sociólogo do Observatório das Favelas. Com a responsável do Programa de
Prevenção de Homicídios entre jovens. Reunir-me com a diretora de uma ong na
Cidade de Deus. Nos entretantos, pegar um ônibus. Correr para outro, que decide
não parar. E pegar ainda outro. Trânsito parado na Avenida Brasil. Os livros
pesam e alguém me oferece o lugar sentado. Ou para segurar os livros durante a
viagem louca, apertada e sudorosa.
Ao sábado curso “Favelas Cariocas: Ontem e
Hoje”. Escutar. Aprender. Muito. Conversar com os colegas. Cada um mais
interessante que o outro. Aprender. Sair com mais dúvidas do que quando entrei.
E com um maço de textos para ler. Com ideias, projetos, vontade de ficar cá.
Caminhar na orla. Assistir a um concerto gratuito em Ipanema. Samba canção e
mar como pano de fundo. Caminhar. Encontrar-me com a voluntária professora de
inglês. Comer açaí. Pegar dois ônibus para regressar a casa. Encontrar um aluno
na rua mal chego a Lucas. Lavar roupa. Revisar os e-mails. Procurar trabalho.
Espreitar pela janela os jovens que ouvem funk durante toda a noite de sábado.
Com muita sorte, ouvem samba, mas isso só aconteceu uma vez. Um carro com um
alta voz no volume máximo. Dançam. Bebem. Falam alto. Tento dormir. Fogos.
Tento dormir outra vez. Mais fogos e me assusto. Vou à janela. Música. O som da
ventoinha. Do funk. Dos aviões.
Ao domingo acordo cedo. Aliás, nem chego a
dormir. Pegar mais ônibus, mas desta vez vão rápido porque não há trânsito.
Pedir ao motorista que me diga qual é a saída. Fazer caminhada com grupo de
moradores do bairro da Urca. Subir ao Morro da Babilônia. Visitar a favela
desse morro. Caminhar no calçadão de Copacabana. Apanhar sol. Conversar com um artesão
que vende pulseiras e colares na praia feitos no Complexo do Alemão. Acabar em
casa de uma portuguesa de 81 anos que vive há 60 no Brasil e ainda tem sotaque
luso. De Cinfães. Uma casa em plena Copacabana. Nada que ver com as de Lucas.
Conversar muito. Tomar um refresco. Andar em bicicleta graças ao fantástico
sistema de bicicletas públicas do Itaú. Pena que só exista na zona sul. Andar e
andar de bicicleta... do Leme até Leblon. Parar para ver o nascer da lua
no mar. Pegar ônibus. Outro. Chegar a casa. Conversar com a Neuza. Organizar
reuniões. Trabalhar até às 3h da manhã. Lutar contra os mosquitos durante toda
a noite. Acordar no dia seguinte com a cara tipo sarampo.
Observar. O amanhecer na favela. Os alunos com as
t-shirts da Prefeitura indo para as aulas. O Paulo que abre a mercearia. O
bandido que já mudou de turno. A água do valão que parece estar cada vez mais
suja. Os passos lentos e pesados da Bia, que vai comigo à ginástica. A senhora
de idade que não consegue fazer o exercício. O professor que anima. A fila
imensa de pessoas que espera o ônibus que vai para a zona sul e só regressa à
noite. Os vendedores que colocam as bandejas de abacates e mangas nas suas
bancas debaixo da ponte. O vizinho que já está em frente à nossa casa e aí
ficará sentado até anoitecer. As carrinhas de transportes que abastecem os
comércios. A grua que retira o lixo do valão. Os carros de mão sobrecarregados.
As crianças que chegam ensonadas à aula. Os sorrisos. As gargalhadas. A forma
como falam de coisas sérias. Os gestos. As frases. O beijo que me dão antes de
saírem. O jeito dos adolescentes. As conversas que têm entre eles. Inquietudes.
A mudança de feições no trajeto norte-sul.
De cor de pele. De roupa. De arquitetura. Casas de tijolos. Becos estreitos e
labirínticos. Pó. Lixo. Portas e janelas abertas. Portões altos e porteiros à
entrada. Pessoas sentadas à entrada das casas. Conversando. Vendendo coxinhas
de frango. Pessoas correndo no calçadão, andando em bicicleta, tomando agua de
côco. No trem, vendedores de isqueiros, biscoitos Globo, refrigerantes. Muito
ruído. Muita trepidação. Não dá para escrever. No entanto, eu insisto. Como
é que você consegue, e ainda por cima com letra bonita? Olhares curiosos em
cima das minhas anotações. Olhares cansados. Perdidos. Sonolentos. Corpos
desgastados. Descalços. Alguns deitados em redor da Central do Brasil.
Dormindo. Agoniando. No metrô, louros bronzeados com a sua prancha de surf.
Crianças com uniformes de colégios particulares. Homens engravatados. Chapéus.
Morenas elegantes. Turistas de bermudas. Mochilas Northface. Óculos de Sol.
Cheiro a perfume. Escadas rolantes. Limpeza. Ipods. Sapatilhas Nike. Ordem.
Calças fitness. Beleza. Luxo.
Ao fim do dia, uma multidão passeando pela
orla marítima. Tomando caipirinhas. Escutando música. O pôr-do-sol. Os morros
iluminados. Na Central, os catadores entram nos ônibus com os sacos cheios de
latas. As ruas ainda mais sujas. O trem ainda mais cheio. Os olhares mais
cansados. Em Parada de Lucas, muita gente nas tascas. À porta de casa. Festas
improvisadas. Bailes. O jogo do Botafogo-Vasco. Cervejas. Crianças brincando
nas ruas. Armas.
Sentir. Felicidade, todos os dias quando me
desperto e me lembro onde estou e o que estou fazendo. Emoção. Angústia, por
pensar que só estarei três meses. Paz. Serenidade. Quando chego a Copacabana e
vejo o mar. Caminho na areia. Sinto a areia massajar meus pés. A água salgada
na boca. O sol na pele. Quando olho à minha volta e me deixo contagiar pela
beleza do Rio de Janeiro. O mar. Os morros. A natureza. As palmeiras.
Satisfação. Prazer. Quando ando de bicicleta pela orla e vou olhando o mar e
ouvindo os sambas das esplanadas. Surpresa. Incredulidade. Revolta. Impotência.
Por tantas injustiças, tantas carências, tanto sofrimento. Tantas vidas despedaçadas
pelo tráfico. Pela violência. Pela espiral de desgraças. Lágrimas. Tristeza.
Empatia. Admiração. Por aquelas pessoas que estou conhecendo e que são exemplos
de resiliência e força. De esperança. Energia. Ternura. Por todos e cada um dos
meus alunos. Satisfação. Alegria. Quando os vejo a aprender, a rir, a desfrutar
das dinâmicas e dos exercícios. Entusiasmo. Ao preparar as aulas, ao dar
as aulas, ao escrever o relatório das aulas. Desespero. Cansaço. Quando o
ônibus não anda, o trem está cheio, o metrô me esmaga. Quando as horas passam e
é difícil chegar ao destino, fazer qualquer coisa, avançar. Desilusão.
Quando chove precisamente no único dia em que poderia ir à praia. Domingo. A
casa se inunda. Panos e toalhas para estancar a água que escorre pelas paredes
e pinga do teto. Leveza. Descontração. Quando saio de casa e não sei como vai
terminar o dia. Termino conversando com alguém durante horas. Descobrindo algum
recanto surpreendente. Aprendendo. Felicidade.
Reflexionar. Sobre tudo o que estou vivendo,
observando, sentindo. Todas as experiências. Todas as imagens. Todas as
conversas. Sentimentos. Sobre tudo o que estou aprendendo, que é muito, e não
consigo absorver se não tenho tempo para reflexionar.
Ler. O jornal. A revista. Os livros que trouxe
na mochila. Travesuras de la niña mala. La ciudad y los
perros. El español em la maleta. Rio de Janeiro, Carnaval de fuego. Os livros de espanhol que requisitei no
Cervantes. Espanhol urgente para brasileiros. Os livros que me
ofereceram no Observatório das Favelas. O que é a favela, afinal? Homicídios
na adolescência no Brasil. Prevenção à violência. Os textos das aulas. Favela,
cidade e cidadania em Rio das Pedras. Nunca é tarde para ser feliz? A imagem
das favelas pelas lentes do Correio da Manhã. Das remoções à célula urbana. Páginas
web de ongs, projetos sociais, iniciativas. Wikipédia. Google.
Escrever. As conversas que tenho. As imagens que
observo. Os sentimentos. Os relatos. Tudo o que vivo. No diário. Algo no blog Arroz
e Feijão Preto. As avaliações individuais de cada aluno. Os
relatórios semanais das aulas. Os posts do blog Español para Tod@s. Os
e-mails. As mensagens do facebook. A agenda. Os apontamentos das aulas do
curso. As frases soltas. Os pensamentos. Os desejos. As inquietudes. Os medos.
As alegrias.
Falta-me tempo para viver, simplesmente
viver esta experiência, deixar-me levar, sentir, observar, escutar... e para
pensar em tudo isso, ler e escrever todos os pormenores, todas as
insignificâncias... Apetecia-me poder gravar todos os meus dias para, mais
tarde, os transcrever. Porque não é fácil viver e ao mesmo tempo querer
registar tudo. Absorver tudo. Mas... se sinto essa impotência, essa angústia de
não conseguir fazer tudo o que quero, é porque realmente os meus dias são ricos
e completos e estou aprendendo e recebendo muito de tudo e de todos. E isso
já ninguém me tira...
PS: Parabéns a todos aqueles que
conseguiram ler este post tãooooo longo!!! Merecem um aplauso!! Clap clap clap!
Pôxa, este post está fantástico. Pena que seja privado!!!
ResponderEliminarpalmas a ti que nos encadeias desde o primeiro momento a ler-lo até ao fim! obrigada :)
ResponderEliminarO clap clap clap só pode ser dirigido é a ti...
ResponderEliminarUm texto absolutamente formidável...
E quem sabe um dia terás a possibilidade de escrever para memória futura e não em privado tudo aquilo que estás a ver e sentir... sonhar é isso... E com esta qualidade, sonhar não custa nada... ;-)
Beijinhos do outro lado do oceano... em frente... :-)