quinta-feira, 11 de abril de 2013

E tudo começou há um ano atrás


Antes de fechar a porta, caminhei lentamente por toda a casa, repousando lentamente os olhos em cada recanto, em cada objeto, em cada pedaço daquele que era ainda o nosso lar. O sofá laranja onde nos espreguiçávamos vendo as notícias depois do almoço, o Cuéntame como pasó nas noites de quinta, os filmes alugados durante os fins de semana, depois de uma longa caminhada na Serra de Guadarrama ou da Pedriza. A mesa do meio, com alguns livros e revistas distraidamente pousadas e os vouchers oferecidos da Vida é Bela, esperando o dia que não chegou para serem desfrutados. O móvel debaixo da televisão, com o passpartout cheio de sorrisos e os livros grandes de História Mundial e de Geografia. As colunas discretamente escondidas de onde saía a música que embalava os serões de leitura e as festas com os amigos. E os cestos debaixo do móvel, guardando ordenadamente as revistas yoga journal, sport life e oxigeno. As estantes pretas, coloridas pelos livros sobre Menores Infratores, Psicopatas, Mediação de Conflitos, Direito Penal, Gestão de Empresas, Marketing. O globo que tantas vezes girava, viajando pelo mundo com o olhar e a imaginação. O trono do Grony junto à janela, onde ele era feliz durante os fugazes minutos em que o sol entrava e lhe aquecia o pelo preto e branco.  Lá fora na varanda, as protagonistas de muitos quilômetros de aventuras, suores e felicidade. Ainda na sala, a geladeira coberta de ímãs de viagens. Dentro, iogurtes suficientes para uma família numerosa, queijo Garcia Vaquero, jamón serrano e chocolate preto com 80% de cacau. Entre tantos outros quantos básicos. Os frascos de vidro alinhados no móvel e coloridos por muesly, sésamo, avelãs, castanhas de caju, nozes, platanitos, korn flakes. Os puffs castanho e laranja, que o Grony ia alternando nas suas longas sestas.  As viagens por Espanha, Peru, Argentina, Venezuela, França,... emolduradas nas paredes.
A cozinha minúscula onde cozinhávamos a pasta de legumes com camarão, a dorada a la sal, e onde batíamos bolos nos dias de festa. Ai, esse cheirinho de bolo no forno que me transmite uma sensação indescritível de lar. Se houvesse uma fragrância que se chamasse lar, teria certamente o cheiro a bolo no forno. No armário estreito do corredor, os tupperwares arrumados por tamanho, a batedeira, o aspirador e os artigos de limpeza. A casa de banho com as fotos de momentos felizes na praia, a cortina de patinhos amarelos a condizer com o tapete, também amarelo, a maquilhagem, os cremes e emulsões organizados em cestos em cima da mesinha e debaixo da pia.
O quarto do Grony sempre mais desarrumado do que eu desejaria, os sapatos, os dossiers, a impressora, as mochilas, a tenda, os sacos cama, os casacos de montanha, os patins. O nosso quarto com a colcha verde e cinza, as almofadas, o quadro dos músicos comprado em Cuzco, as fotos de momentos plenos do verão na Croácia e na Bósnia, os tapetes bege, os imensos colares pendurados na parede, o Ratatoille de peluche oferecido quando fui operada ao pé.  A foto a preto e branco dos noivos passeando na calçada. As mini-estantes de cada lado e as mesinhas de cabeceira com mais livros e a revista Sábado da semana anterior. A roupa pendurada no armário por ordem de cores, da mais escura à mais clara. Os casacos, as calças, as camisas, os lenços, os cachecóis e as camisolas.
Coloquei a mochila às costas, essa mochila verde e grande que enchi de uns quantos tops frescos e t-shirts, cinco calções, duas saias, alguns livros, sandálias, dois casacos, dois jeans, a máquina fotográfica, o portátil, vários cadernos de viagem, muitas canetas, o celular, um estojo com medicamentos, um nécessaire recheado. Essa mochila verde e grande que enchi de entusiasmo e de sonhos por realizar, que agora repousa no meu quarto em frente ao mar.
E mesmo antes de fechar a porta, vi as conchas e a estrela do mar. Vi as nossas mãos morenas nas pedras brancas da Sardenha. Essa fotografia que nos dava as boas-vindas sempre que entrávamos em casa. Fechei a porta. E, sem saber, fechei uma fase da minha vida.
Parti do 3ºA da calle Alcantara, número 64, com uma passagem aérea de ida e volta para o dia 29 de Junho. Eu sabia que três meses não me bastariam para fazer tudo o que desejava fazer no Rio de Janeiro. Tínhamos um plano. Procurar emprego e conseguir ficar no Rio, sonho que brotou na primeira vez que tínhamos vindo cá, em 2010, e que fui regando ao longo de muitos meses de busca e persistência. E que foi realizado no dia 6 de julho de 2012 (casualmente, o dia em que a nossa história começara, lá no ano 2000...), quando comecei a trabalhar oficialmente no ISER. Consegui ficar. O plano se concretizou. Agora só falta a segunda parte do plano se concretizar...
Era dia 11 de Abril de 2012. Foi há um ano atrás. Um amigo perguntou-me se passou rápido ou devagar. Respondi: intenso. Insistiu: rápido ou devagar? Acho que das duas formas. Rápido, porque parti despedindo-me de todos e de tudo por 3 meses e, entretanto, sem quase me dar conta, apesar das saudades serem muitas, passou-se um ano. E devagar, porque as rotinas da vida que tinha em Madrid estão cada vez mais longínquas... adquiriram outras tonalidades, outros sujeitos, outros objetos, outros significados. Intenso. Acho que é como consigo descrever melhor o tempo que passou através deste ano. Entre cada despertar e deitar de cada um desses 365 dias, couberam muitas imagens, muitas conversas, muitos sorrisos, poucas lágrimas, muitos sentimentos, mais pensamentos, imensas inquietudes, emoções. Couberam muitas pessoas. Pessoas com quem me cruzei fugazmente, com quem conversei na rua, na praia, no ônibus, na padaria, na van, no supermercado, que provavelmente nunca mais voltarei a ver – ou sim, porque aqui acontecem tantas (mas tantas) casualidades, que isso já chegou a acontecer várias vezes – mas que deram significado e palavras a momentos porventura aborrecidos ou banais. Pessoas com quem vivi momentos muito felizes e que partiram, sem saber se o destino nos vai dar a oportunidade de nos cruzarmos novamente. Acredito sempre que sim. Pessoas com quem gostaria de ter vivido mais momentos. Mare, Elisa, José, Claire. Pessoas que felizmente ficaram, que conheci logo no início, em Parada de Lucas e no curso que fiz sobre Favelas Cariocas, e depois na Babilônia, no trabalho, na praia, em festas, em encontros, em casa de amigos, em viagens, nos treinos, e que continuam dando cor e alegria aos meus dias.
Entre cada despertar e deitar de cada um desses dias coube também muita, muita música, que parece que tenho vivido dentro de um autêntico musical. Ou melhor, dentro de uma roda de samba e de choro. É como se para cada momento houvesse um ritmo de fundo, um poema, uma frase do Chico, do Gil, do Caetano, da Marisa, do Arlindo, do Martinho, do Jobim.  Uma melodia do Pixinguinha, da Chiquinha ou do Nazareth.
E coube aprendizagem. E quanta aprendizagem!... Quantos mitos quebrados, fronteiras ultrapassadas, dúvidas esclarecidas...
Porém, nem todos os dias foram fáceis, houve também muitos em que me sentia cansada, exausta até, do trabalho ou dos imprevistos que sempre surgem nesta cidade. O jeitinho malandro do carioca chateia, enerva. A falta de pontualidade e compromisso incomodam. Os transportes públicos insuficientes e imprudentes às vezes fazem soltar gargalhadas (pelo surreal da situação), mas na maioria das vezes irritam e atrasam. O caos e desrespeito para com o peão enfurecem-me. A vida na favela traz dias sem água, outros sem luz, a internet que não funciona, o senhorio que promete e não cumpre e nos tenta enganar, o vizinho que ouve funk ou canções evangélicas no volume máximo a horas sempre impróprias, o correio que não chega a casa, o som de alguns disparos, os insetos, a chuva que cai pelo teto do meu quarto, os ruídos que não me deixam dormir. A insegurança que me impede voltar de bicicleta do trabalho ou ir a pé a determinados lugares e a certas horas. Aquela sensação de que qualquer coisa (má) pode acontecer a qualquer instante e que tudo demora, é difícil, burocrático, lento. E as saudades. De todos e dele em particular. Devastadoras, que vão corroendo o coração e deixam um vazio enorme, a sensação de que falta sempre algo – ou melhor, alguém – para completar a pintura dos momentos felizes.
Houve, pois, dias em que tudo pareceu mais difícil, cansativo, esgotante. Mas a verdade é que, mesmo nesses dias, houve alguma pessoa, alguma música ou alguma imagem que me fez sorrir e acreditar que, amanhã, será diferente. Também o reconhecimento de que estou vivendo a realização de um sonho, e a gratidão que sinto por estar conquistando tudo o que desejei, faz com que os aspetos menos positivos da vivência aqui se diluam rapidamente em qualquer pormenor.
Desfolho o caderno que o Henrique e a Rita me ofereceram no nosso café de despedida em Madrid e quase estremeço ao ler as palavras que escrevi nas primeiras páginas, dentro daquele avião da TAM que me trouxe até estas terras de além-mar:
Sinto que embarco numa nova aventura, desta vez do outro lado do Oceano, longe da pessoa que amo e sozinha... mas apoiada por todos e cheia de ilusões, expectativas, emoções! Tenho a certeza que vai ser uma experiência única e que me transformará como pessoa e profissional!(...)
(...) 23:00 DESCOLAGEM! Ao descolar vieram-me algumas lágrimas aos olhos, pensando que vou deixar tão longe a pessoa que mais amo!... Estou um pouco estranha, meia anestesiada, incrédula ainda por isto me estar a acontecer! Dói-me a cabeça e estou cansada, mas vou tentar ver um filme, relaxar, e desfrutar da viagem. Estou muito feliz pela reviravolta que a minha vida deu em menos de um mês... e pelo desafio que tenho pela frente. Hoje, dia 11 de Abril de 2012, faz precisamente 20 meses que eu e o Rich apanhamos o voo (à mesma hora!) para o Rio de Janeiro para iniciarmos a nossa lua de mel fantástica. Nessa altura eu senti que queria voltar ao Rio, que queria viver e trabalhar lá um tempo, nalgum projeto social em favelas. E... voilá! Aqui estou eu, 20 meses depois, voando para a realização desse sonho! Só falta o Rich encontrar lá trabalho para estarmos juntos e felizes! (...)
10:00 Aterragem Aeroporto Santos Dumont – Rio de Janeiro. Que emoção! Já estou aqui! A paisagem de cima, as vistas... foram maravilhosas!
E o que mais me surpreende (ou não), são as palavras que escrevi à noite, depois de um primeiro dia de chegada, ida ao centro para fazer algumas gestões, horas no trânsito da Avenida Brasil e abertura da mochila para retirar as primeiras coisas: São 0h10 e estou exausta, mas bem e com a sensação que já estou adaptada! Não sei explicar! Aqui na comunidade não estive muito tempo, mas parece-me agradável e tranquila e sinto-me bem. E no Rio sinto-me em casa... não consigo mesmo explicar, mas é mesmo assim! Adoro esta cidade e quero aproveitar para a conhecer muito bem! (...) O balanço desde primeiro dia que durou muito mais do que 24 horas é super positivo. Não me sinto desiludida, não senti medo nem desconfiança... Pelo contrário, senti que, de alguma forma, estou ligada fortemente a este lugar.
(...) Oxalá os próximos dias sejam todos assim, repletos de imagens novas, aprendizagem, experiências únicas. Agora vou dormir para tentar recuperar. 0:20.(...)
Só posso sentir-me feliz, muito feliz, por este ano (bem) vivido no Rio de Janeiro. A celebração pessoal do primeiro aniversário aqui serve-me, mais do que tudo, para parar uns instantes e reflexionar sobre tudo o que aconteceu. E para me despedir mentalmente das pessoas e da nossa casa em Madrid. Sei que não voltarei à casa, àquela vida que tínhamos da qual me ausentei por 3 breves meses e que depois se transformaram num ano e num tempo sem fim... Sei que deixei muitas pessoas para trás, muitos momentos por viver lá também... Muitas despedidas por fazer. Muitos abraços apertados por dar.  Mas talvez tenha sido melhor assim. Menos doloroso.
Agora, passado um ano, realmente só desejo continuar a viver dentro desta roda de samba e choro, rodeada de pessoas, sorrisos e olhares brilhantes, aprendendo, assimilando, cantando, desfrutando. E com o Rich. Sem ele, a pintura dos momentos felizes tem um vazio demasiado grande...

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