domingo, 13 de janeiro de 2013

Domingo em Madureira


Abre a roda, chegou Madureira
A poeira já vai levantar
O batuque ginga ioiô
Ginga iaiá 
E lá vou eu cantando com a minha viola
O amor tem seus mistérios
Por onde me deixo levar
Laiá
Nossa história começa por lá
No engenho da fazenda
Dos cantos de “canaviá”

Bate o sino da capela
Ôi… que é dia de santo, sinhá

Tem mironga de jongueiro
O tambor me chamou pra dançar

Tempo rodou na roda do trem e veio
A inspiração do partideiro
Que versou no Mercadão
Foi nesse chão
Que a estrela brilhou no tablado
O “Madura” pisou no gramado

O malandro charmoso dançou
No pagode com outro gingado
Quando o bloco chegou
Agitou o suingue do black
E a nega baiana girou

Cai na folia, sem grilo, meu bem vem na fé
Na ilusão da fantasia
Vai como pode quem quer

Surgiu a serrinha imperial
Em outros caminhos para o mesmo ritual
Portela, meu orgulho suburbano
Traz os poetas soberanos nesse trem para cantar
Que Madureira é muito mais do que um lugar
É a capital de um sonho que me faz sambar

Abre a roda, chegou Madureira
A poeira já vai levantar
O batuque ginga ioiô
 

Madureira. A primeira vez que ouvi falar deste subúrbio carioca foi na voz de Arlindo Cruz , cantando O meu lugar/ É sorriso é paz e prazer/ O seu nome é doce dizer/ Madureiraaa, lá lá laiá, Madureiraaa, lá lá laiáando. Hoje peguei o ônibus decidida a conhecer O meu lugar de Arlindo. Cheguei na hora em que o Mercadão já estava fechando as portas, mas deu ainda para comprar um par de incensos e aguçar a vontade de regressar para vasculhar as máscaras e perucas para o Carnaval que já está aquecendo com os ensaios de Blocos de Rua e Escolas de Samba. Para me perder pelas lojas de tudo para o Candomblé. Grande edifício de dois andares, repleto de lojas que vendem brinquedos, plásticos, guloseimas, galinhas, frutos secos, roupa, enfim, um pouco de tudo, isso sim, a preços muito baratos. No atacado e no varejo.
Do Mercadão fui para o Parque de Madureira, inaugurado no ano passado. Em frente à fábrica de biscoitos Piraqué, com um grande morro ao fundo, e prédios em volta, este parque tem feito muito sucesso numa zona norte esquecida. Teatro, pistas de skate, bicicletas para alugar, campos de basquete. Pais e mães passeando com seus filhos neste domingo de sol tímido, mas quente.
Oi, desculpe! O Parque de Madureira é por aqui? Sim, sempre em frentchi  e tem qui passar pró outro lado pela passarela. Valeu, brigada. Você veio conhecer o Parque? Sim, e depois quero ir à feira das Yabás! Li que fazem esta feira cada segundo domingo do mês, né? Sério, eu também vou para lá mais tardji com uma amiga! Você veio sozinha? Sim, porquê? É tranquilo, né? É... mas tem que tomar cuidado a quem pede informações... Eu sei, por isso perguntei a você... Você está vivendo aqui no Rio? Sim, vivo na Babilônia, lá no Leme... Ah! Sei! Conheço bem, trabalho na UPP Social... Ah, sério? Por acaso não conhece a Raiza, que também trabalha no ISER? Raíza! Claro, minha grande amiga! Trabalhamos uma ao lado da outra! O Rio é mesmo pequeno...É mesmo... Ficámos conversando durante algum tempo, trocámos os celulares, combinamos encontrarmo-nos mais tarde na feira.
No caminho do Parque para o Largo do Portela, cruzei-me com um vendedor de pipocas que me deu algumas indicações. Ali na segunda rua à esquerda, depois à direita, vai em frente... Americana? Ah, com esse sotaque está muito americanizada... Apesar de eu ser assim escurinho, meu falecido pai era português. Casou com minha mãe, que é negra. Os portugueses gostam muito de escurinhas, né mesmo? Meu pai era lá di... Gaias. Você conheci? Eu já lá fui duas vezes. Ele era de Gaias de baixo. Porque tem Gaias de cima e de baixo, né? Ele era de baixo.
Entre virar à esquerda numa rua e virar à direita noutra, que a dar indicações geralmente os brasileiros não são muito bons, cruzei-me com a Paula. Senhora de olhos brilhantes, sorriso fácil e que se ofereceu logo a ajudar-me. Você veio aqui sozinha? Você é muito linda. Sabe uma coisa? Fica difícil explicar como ir. Eu só tenho que ir ali ao mercado fazer a compra para o almoço e depois eu levo você lá na feira. Você vai comigo. Pode ser? Você confia em mim? De pequena viveu em vários bairros, mas já vive em Madureira há mais de 30 anos. Ou melhor, em Oswaldo Cruz. São bairros tão próximos, que quase se confundem. Já dizia o Arlindo: O meu lugar/ Tem seus mitos e Seres de Luz/ É bem perto de Oswaldo Cruz/ Cascadura, Vaz Lobo e Irajá. Os pais vivem na Sá Ferreira, lá em Copacabana, mas ela não costuma ir muitas vezes à zona sul. Não sei explicar, mas fica longe e não tenho muita vontade de sair. Por isso admiro você, já viajou por tantos lugares. Fizemos a compra juntas, procurando sempre os preços mais baixos. Está tudo muito caro. Já viu o preço do café? Não vou levar, não. Fomos até casa dela, ou melhor, dos pais, um último andar que antes era um terraço e que, com algumas obras, se tornou uma casa espaçosa e luminosa. Obras que tiveram de ser suspensas porque ficou desempregada há umas semanas. Apresentou-me o filho de 10 anos, com quem vive, conversamos, trocamos os contatos, fizemos promessas de futuras visitas.
De sua casa, vi que tinha dado uma enorme volta desde o Parque de Madureira, que era ali bem ao lado. Cheguei até a pegar um ônibus, para depois ter que andar tudo para trás. Já disse que o forte dos brasileiros não é dar indicações. Não gosto de generalizar, por isso prefiro pensar que dei todas aquelas voltas para me poder cruzar pelo caminho com pessoas tão maravilhosas.
Cheguei à feira das yabás, que foi a desculpa que encontrei para passar o domingo em Madureira, já com a alma cheia por tudo o que tinha acontecido antes. É uma feira gastronômica, onde as tradicionais tias da região comandam as 16 barracas que oferecem comida para todos os gostos na Feira. Tia Surica é responsável pelo mocotó e o aipim com carne-seca. A iguaria peixe frito, molho de camarão e pirão é de responsabilidade de Tia Nira e Dona Neném, a mais velha das tias, com 87 anos, prepara a rabada com batata e angu. Comi um caldinho de feijão e misturei-me na multidão que sambava feliz ao som de uma roda de samba liderada por Marquinhos Oswaldo Cruz, debaixo de um sol abrasador.
Contagiante a alegria do povo brasileiro. Senhoras negras de pele enrugada, cabelo branco, descalças, olhos fechados, com o samba nos pés, nas pernas, nas ancas, no rosto. Senhores com ar de malandro, chapéu branco com fita preta, camisa azul da Portela, calça e sapatos brancos. Malandro!/ Só peço favor/ De que tenhas cuidado/ As coisas não andam/ Tão bem pro teu lado/ Assim você mata/ A Rosinha de dor. Todos conhecem as letras e cantam bem alto enquanto se movimentam naquele jogo de pés e ancas que ainda não consegui aprender. Jovens de todas as idades. Famílias. Grupos de amigos. Da nova e da velha Guarda.
Cai a noite e uma chuva fina. Quem é do mar não enjoa, não enjoa. Chuva fininha é garoa. É garoa, canta com voz firme e melodiosa Anna Costa, em homenagem a outro grande do samba, Martinho da Vila. Por favor liberem um pouco aí à frente que está chegando a Portela. Lá ao fundo, aparecem jovens bailarinos cantando e anunciando Abre a Roda/ Chegou Madureira/ A poeira já vai levantar/ E os batuques ginga ioiô ginga iaiá/ E os batuques ginga ioiô ginga iaiá. De seguida, uma multidão imensa, alinhada e afinada, vai cantando e dançando o samba-enredo deste ano.
Pensar que tantas vezes assisti pela televisão aos desfiles das escolas de samba no Sambódromo, ter estado num ensaio técnico da tantas vezes campeã Portela parece-me algo incrível. A bateria arrasa, as sambistas não se cansam, o azul e branco da Portela coloreiam as ruas deste bairro berço do samba.
Antes de pegar o ônibus de regresso a casa, relembro o grafitti que horas antes tinha observado num prédio de dois andares, mesmo ao lado do GRES da Velha Guarda: Saír de Madureira para quê...

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